Beócia carta para um mundo igualmente etc.

É uma carta, saiba, caduca como o mundo, como eu, que dele faço parte, embora não concorde com seu sistema, criado por todos, menos por mim, motivo justamente de eu não concordar. Uma carta de pedido de socorro, como queiram, sabendo eu que nem Deus já poderá me ajudar, com o perdão do clichê. Uma carta de quem sorriu a vida inteira, para os outros, para mim mesmo no espelho e às vezes para ninguém, intuído sobretudo em não desaprender do artifício duro (sorrir), dado este mundo idiota, para não dizer caduco novamente, ou caótico, repetindo o c. E por isso – pelo meu riso ora tresloucado e sem sentido, de alegria, ora para camuflar a angústia ou náusea que aqui dentro se permitiram (e não “eu permiti”) entrar – e por isso me tacharam louco, apesar de eu nunca acreditar num ser humano que não seja eu mesmo, não obstante a minha dita loucura, ou lucidez, como prefiro chamar, amarga. E amargo o choro de agora, entremeio à noite de estrelas faiscantes, creio eu, pois estou olhando para o teto, e não para o céu. Prefiro imaginar as noites a nunca ter as olhado, independentemente se feias ou bonitas. O choro alcança o paroxismo, não fazendo a mínima idéia do que isso significa, enfim, é um choro de doer, com lágrimas, soluços e tudo. E música. Sim, a música é para dar poeticidade às palavras, à carta, que, se chegar onde pretendo, fará muito sucesso, já decepcionado eu de somente fazer sucesso depois de morto. Morto? Pois é, escrevo esta justamente para dizer-lhes, quem quer que sejam esses lhes: vou me matar, ainda que não saiba como. Sei que quero uma morte tranqüila, sem sangue, como assim não o foi minha vida, bem insignificante, posto que mais aventureira e cheia de emoções que a sua. Cheia de música, de choros, de danças, às vezes macabras, de incertezas sobretudo – daí de ser melhor que a sua, banhada em rotina e lucidez, embora pseudo, com o perdão do grego. Minha vida foi farta de paixão, na maioria das vezes censurada, por ser direcionada ora para prostitutas ora para mulheres casadas (e infelizes) ora para pessoas do mesmo sexo, a saber, masculino. Quero delicadamente lhes falar que enfiem suas tradições, seus sistemas e sua religião no meio do cu, não sem antes de limpá-lo, para dar-lhe uma aparência melhor, visto que é o que mais lhes preocupa. Vou pegar esta carta, ou missiva, para soar mais erudito, e colocá-la numa garrafa, sabendo de antemão que teria mil alternativas mais criativas. Prefiro, porém, que a garrafa e conseqüentemente a carta (posta dentro) tenham vidas próprias, mesmo que para isso corram o perigo de o mar, como sempre indeciso, não saber aonde levá-las, ou deixá-las afundar, o que seria poético no entanto estéril, pois creio eu que os peixes ainda não aprenderam a ler, oxalá nunca aprendam!, para não ter que ler tantas porcarias que têm sido escritas, dentre elas isto, que se nomeia (eu nomeei) carta. Inclusive, a título de corroborar o assunto, a folha, não plastificada, molharia, se para o fundo do mar afundasse, e rasgaria, ou se desmancharia. Dada a cena que esmaga a minha mente já esmagada (se não, não estaria aqui, e assim), decidi, por unanimidade, ou seja, um voto a zero, suicidar-me. Vejo palhaços, e sinceros (o que é pior) mortos, com um sorriso nos rostos, em rostos (para ser mais exato) feios e iguais ao meu – por isso do meu arrependimento e da conseqüente decisão de me matar, porque não vejo, por enquanto, alternativa melhor (se tem, por favor, venha me informar qual, no máximo em vinte minutos). Liquidei quem não merecia ser liquidado. E, então, morri (prenunciando o futuro), posto que depois, daqui a pouquinho, após eu acabar de escrever, colocar na já citada garrafa e jogá-la no mar, ou num rio que para lá vá, como todos os rios, acredito eu, contrastando com o resto, no qual já não acredito mais, sobretudo em deuses. Fiquem eles com sua cômoda condição de não-ser-humano. Se aqui estivessem, veriam minhas lágrimas e, junto, o riso convulso que me toma por completo, inclusive na altura da cabeça do pênis, já muito não usado. A caneta tá... falh... por... porra! Troquei de caneta, agora vermelha, da cor do sangue de meus companheiros, que aqui estão, embora mortos. Que suas almas vão para o céu, ou inferno, dependente se foram bonzinhos ou não. Deus sabe de tudo, bom ou ruim para Ele. Mas eu não! E não sabia quando atirei, e rindo, alto e descaradamente, em todos, com suas mochilas, cadernos, canetas e outros acessórios completamente desnecessários, para não citar, por simples questão de ética educacional, os acessórios-professores (ou mestres), noventa por cento deles também dispensáveis, sobretudo os arrogantes e cheios de sabedoria, falsa, deixemos bem claro este detalhe. Culpo-os por me deseducarem, apesar de eu ter aprendido a somar, dois mais dois é igual (ou são iguais?) a três. Deus meu, Deus meu, por que nem o prazer de me desamparar me deu, já que nunca esteve próximo a mim? Somando os prós e os contras, fico feliz no que fiz: dois revolucionários a menos no mundo, daqueles que citam Marx e enchem a boca ao falar de comunismo, mas não têm coragem de dividir o pão com o melhor amigo. Menos três ou quatro mulheres bonitas porém intransponíveis (por que se arrumar tanto, se não transa com ninguém, ou tão-somente com quem tem dinheiro?). Menos cinco veados que olhavam para o meu pinto quando eu mijava no banheiro, provavelmente para compará-lo com os pintos alheios, nos quais já burilaram, e chuparam. Menos um débil mental (odeio débeis mentais) de óculos que custava conversar, mesmo sendo o orador do local em questão. Menos o Meu amor, o Meu grande amor (e disso não me sinto feliz, mas sim desesperado, e começo, novamente, a chorar), o Amor que, juntos, ríamos (alto e descaradamente) e chorávamos, na cama ou pelados, no banheiro ou com roupas, mesmo dormindo, nos sonhos, harmônicos como o céu e a terra, não levando em consideração os seres que lá e aqui se encontram, que, vamos ser sinceros, nunca combinaram, deuses e humanos. Olho no espelho (no espelho da minha imaginação) e vejo um rosto e olhos vermelhos, posto que azuis no meio do branco avermelhado. Olho no espelho (no espelho da minha imaginação) e vejo um cara gordo e risonho, que mais parece um babaca, daqueles que riem pela coisa mais idiota do mundo, também idiota, palavra idiota, usada por um narrador (ou cartista) idiota. Porra!, e esse choro agora convulso? Deus meu, Deus meu, se não me abandonou (partindo do pressuposto que já esteve alguma vez comigo), preferiria ter Você me abandonado e não Meu amor, já que fazíamos amor, e ríamos, coisas que nunca, eu e Você, ser humano e deus, nunca faríamos juntos! Olho no espelho (idem) e não vejo mais nada, pois as lágrimas são tantas! Tantas! E embaçam, turvam a visão, como a pouco aconteceu – e disso, dessa cegueira, ou lucidez exagerada, adveio a catástrofe (falo do Meu amor, e não dos outros). Já não sei o que falar. Bastaria a folha em branco, falaria mais do que mil palavras, estou chutando, não contei quantas escrevi, nem vou contar, tenho pressa em me matar. (Uma risada, solta e sincera, ao vê-los no chão, ensangüentados mas dignos, nobres). (HA-HA-HA!, rio para não chorar, mais). Todavia choro. Pela última vez. Ainda bem. Não vou dizer adeus. Só direi meu nome, se a caneta nã... se... porr...

Comentários

Rogers Silva disse…
queridos leitores e leitoras,
como esse texto já foi postado aqui muito tempo atrás - embora tenha permanecido postado por pouco tempo -, ele recebeu alguns comentários, os quais transcrevo abaixo da forma como foram escritos:
Vanessa disse…
Perfeito... "No inicio do texto, somos levados a refletir sobre o mundo, tentar fugir dessa alienação que vivemos, no meio pensamos que o autor é totalmente louco... ao final temos a certeza de que o autor é mesmo louco, porém, um louco lucido, um louco que vê além, que foi capaz de instigar séries de sentimento. O pessimismo do conto nos leva a reflexão sobre o mundo, coisa que talvez seja um passo para uma possível elucidação de todos os problemas existentes." Rogers, seu conto é excelente, adorei de verdade... Parabéns! By Vanessa Cristina Prado
Thin White Duke disse…
awee
Roger, muito bom esse seu texto cara, desde a primeira frase faz o leitor pregar os olhos e não desgrudar mais...
parabéns!
ebano3 disse…
Dear writer
Beócia... é a missiva mais louca que já vi de um suícida, que descorre tanto, que nem parece querer se matar! Onde se viu um suícida preocupado com ums esferográfica?rs
No entanto, é linda. Pelos questionamentos, pela velocidade da sua escrita que é até ardilosamente cruel em relação ao mundo que cerca o personagem.
Simplesmente, maravilhosa!
Um abraço,
Pet disse…
pudions!!! Esse texto ficou bom demais,você conseguiu colocar o leitor dentro do texto, estão faltando escritores com essa critividade de expor suas idéias e seus principios, embora eu não concorde com certas coisas que vc escreveu, você sabe porque fica enter nós, mais não será por isso que não vou reconhecer que seu texto ficou show!!!
parabens!!!!!!!

DR.PET
Maria Helena Bandeira disse…
Beocia carta é forte, como o do Cristo (sou fascinada pela idéia de mensagens na garrafa, escrevi alguns contos com ela). É uma carta ao mundo, uma carta ao desconhecido, um pedido de socorro sem destinatário certo, terrível, dramática com um final abrupto em que a caneta falha e não identifica o remetente suicida. A mudança de cor, que mostra a mudança de caneta dá uma força adicional, como se o leitor estivesse assistindo a este desabafo terrível. Muito bom, gostei bastante.
Véio China disse…
Bom texto, complexo é verdade ainda mais pra quem quer se matar. hehe.

Achei frescura mas, interessante a idéia de mudar a cor do texto qdo mudou para a caneta vermelha ( Será que algum editor concordaria com isso?)

Pareceu-me ser bem afeito aos detalhismos extremados e prosa rebuscada.

Merece ser lido.
Elaine disse…
Achei muito bom, e gostei da idéia de mudar a cor da caneta, parece que estamos interagindo com o texto
Ükma disse…
Seu texto transmite muita sinceridade. Não tem como ler e pensar "ah, se mata logo e não enche o saco", eu refleti sobre várias coisas enquanto lia e até lembrei daquele documentário "tiros em columbine"...rs. É, pensei em muita coisa quando li sua carta.
Ruy disse…
Muito criativo. Me chamou a atenção o texto fluido, claro e com estilo.
André disse…
Roger, mto bom esse teu texto, cada frase tem algo de peculiar, gostei pra kct
eaiuhaeiuaeheaae

flew!
Me disse…
O texto é bom e quando comecei a ler achei que odiaria. Não curto desabafos e autobiografias, mas esse tem um tom especial insano que me apaixona. A primeira postagem se perdeu, vc escreveu demais, resuma, diminua, eu quase desisti lá. A segunda é perfeita, adorável, uma macabra despedida, uma macabra confissão e culpa, amei. A última tem que ser lapidada. Se vc arrumar isso fica perfeito. Trocar a tinta foi jogada de mestre, muito inteligente, não sabia de algo assim. Gostei das expressões fortes, do assumido teor homosexual e toda a forte mensagem. Eu to em dúvida, mas, acho que qdo vc refizer peço pra postar no Vale. Muito bom.
Carlos Cruz disse…
É forte e bem escrito. Realmente criativo, um tanto cansativo dada sua complexidade e tamanho.

A jogada mudança de cor foi de mestre. Ainda bem que a máquina de escrever virou peça de museu, não? rs.

No todo, muito bom.

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