Hoje eu pensei em você




Hoje eu pensei em você. E ao pensar em você me lembrei daquele menino tão ingênuo, com medo da mãe brava, com medo da religião que ensinava a obedecer, a obedecer sempre. E ao me lembrar de você eu me lembrei de tanta coisa que remetia a você: de goiabas; de mangas; das árvores que (eu e meus amigos) escalávamos; da chuva que caía e, mesmo assim, não conseguia atrapalhar o futebol que jogávamos (meus amigos e eu) com aquela bola que insistia em me driblar. Me lembrei da poça de água suja que se formava lá pros lados da rua doze. Nessa represa mal formada, rasa, contávamos (crianças corajosas) para todos que nadávamos – mas era mentira. Me lembrei do cheiro do chá de erva-cidreira que a sua avó preparava. Ainda hoje sinto esse cheiro, impregnado nas narinas da alma. Dos córregos e das cachoeiras de águas frias, velozes, me lembrei porque era lá que você lutava contra seu pavor de água: você se permitia pular. Me lembrei dos porcos poéticos, tão dramáticos na hora da morte, que a sua avó (a outra) matava. Ao me lembrar de você, inevitável não lembrar daquele mundo enorme e fantástico, rodeado por tanto mato, tanta gabiroba, tantas árvores, tanta natureza, que era o Alvorada, hoje (sempre) o menor bairro da cidade. Ao me lembrar de você eu me lembrei da sensação de infinito que eu sentia toda vez que olhava ao céu para contar as nuvens. Era de dia, e era bom. Eu me lembrei, quando a noite chegava, da angústia que você sentia ao pensar em eternidade: algo que nunca acaba, nunca acabaria? Seus pensamentos voavam, angustiantes, pelo sem-fim. Criança, você chorava. Você não queria a eternidade (aliás, no fundo você nunca quis a eternidade). Ao me lembrar de você, eu me lembrei daquele avô (que também era o meu avô) forte, seco, duro, fortaleza. Fortalezas morrem?, me perguntei quando (você já jovem) recebi a pior notícia que até então recebera: sim, fortalezas morrem. Mas avôs não são eternos?, era o que você pensava. Fortalezas morrem, criança. Me lembrei de quando, você ainda menino ingênuo, disse ao seu pai (sem saber exatamente o que dizia) que tinha a impressão que morreria jovem. Você errou, criança. A juventude passou. A criança que você era morreu, é certo; mas esta parte mínima de você que sou eu, ainda vive. Hoje esses trinta anos pesam suas pálpebras e suas costas (as minhas costas). E é tão diferente daquele do qual eu me lembrei hoje: você. Não tinha esses olhos sérios. Onde encontrar aquele? Onde encontrar você?

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