Por que ‘O encontro marcado’, de Fernando Sabino, ainda faz sucesso?

 

Por Sinvaldo Júnior 

O encontro marcado, de Fernando Sabino, é um long-seller, o tipo de livro que alcança boas vendagens, tempos após tempos, desde o seu ano de lançamento (1956), o que se comprova com as mais de 100 edições da obra. É, portanto, um fenômeno da literatura brasileira, sucesso não só de público (os números comprovam), mas também de crítica. Aqui vamos tentar compreender esse fenômeno. 

O romance se inicia com a descrição da casa de Eduardo (protagonista supremo), relacionando os cômodos à sua imaginação: 

“A casa tinha três quartos, duas salas, banheiro, copa, cozinha, quarto de empregada, porão, varanda e quintal.

Que significava o quintal para Eduardo?” (p. 9). 

Desde aí o leitor se depara com uma obra de linguagem rápida e sem floreios, opção consciente de um autor que preza pela fluidez da história: 

“A galinha era sua, atendia pelo nome” (...) “Ela se abaixava, deixava-se pegar.” (p. 9). 

Se analisarmos esses dois trechos, perceberemos que o autor opta por evitar os elos coesivos e, em consequência, diminui o tamanho da sua frase e da ideia que passa. Ao invés de um “e” para ligar as duas ações da galinha (se abaixava e deixava-se pegar), Sabino prefere a vírgula, e esse recurso será perceptível no decorrer de todo o romance. 

Veja: “Um domingo encontrou Eduarda na mesa do almoço, pernas para o ar, assada” (p. 9). Qualquer outro autor, sobretudo iniciante, inconscientemente botaria um “Eduardo” antes de “encontrou” e um “de” antes de “pernas para o ar”, entre outros recursos (dispensáveis). Fernando Sabino não. Ele evita, ao máximo, as palavras que poderiam sobrar. Ele não peca pelo excesso. 

É essa linguagem (sem floreios, econômica) que ditará o ritmo da narrativa (fluida, ágil) de Encontro marcado. Do começo ao fim. Trata-se de um clássico romance de formação (Bildungsroman), no qual é exposto, em pormenores, o desenvolvimento físico, psicológico, moral, político e social de um personagem, da sua infância até a passagem da juventude à vida adulta. Eduardo é esse personagem. 

Embora seja o protagonista supremo (vamos chamá-lo assim), nas primeiríssimas páginas o leitor também se depara com Seu Marciano (o pai de Eduardo); Estefânia (a mãe); Adelaide (costureira); Maria (cozinheira); Eduarda (galinha); Floripes (a ama preta); dona Amélia (a professora), “a mulher mais bonita do mundo”; Milton, Miguel, Paulista, Tartaruga (colegas do Grupo); Valderês e Maria Inês (as gêmeas); Lêda (a melhor da classe); Jadir (vizinho, morava na casa dos fundos); Afonso; Letícia (a primeira namorada) – todos devidamente nomeados (inclusive um roupeiro que aparece uma única vez). 

Personagens vêm e vão, os espaços mais importantes da história são a casa e a escola (Grupo), e Eduardo continua sendo o foco central de tudo que ocorre. Há um narrador onisciente, em terceira pessoa, mas que se preocupa em acompanhar tão somente as atitudes, as falas, os desejos e dilemas de Eduardo. Poucas vezes esse narrador se distancia e foca em outro personagem, e quando isso acontece soa estranho para o leitor. 

Nas primeiras páginas, é importante salientar, a construção da personalidade de Eduardo se dá, sobretudo, a partir da visão dos pais: ele é inteligente, nervoso, mimado: “Ele corria as unhas pelo rosto, arranhava-se até sangrar” (p. 11). É aí – nesse início de rápida sucessão de acontecimentos e aparecimento de personagens – que conhecemos o protagonista, dos primeiros anos da sua infância até os quatorze anos. 

É na adolescência que ele descobre que gosta de escrever, ganha um concurso de redação e vai para o Rio de Janeiro, ficando alguns dias sozinho num hotel; é na adolescência que ele conhece Letícia; que sente um troço que ele não sabia explicar, mas que achava que era tristeza; se depara com a morte e o suicídio de um amigo/vizinho (Jadir), com quem justamente havia, na véspera, conversado sobre suicídio; é na adolescência que ele se apaixona, sua mãe se intromete em seu namoro – sobretudo após o vizinho se matar por causa de uma mulher – e Eduardo, por consequência, sofre, chora como qualquer adolescente (dramático) sofreria e choraria. 

Fernando Sabino retrata Eduardo, seu personagem, de maneira que não o apequena só por ser adolescente ou por sofrer demasiadamente, mas – ao contrário – o pinta de forma profunda, dando a entender que em certo momento ele caía em um estado de depressão (até o momento em que começa a fazer natação e, em seis meses, ser o melhor nadador de sua categoria). Tudo é tão rápido em O encontro marcado! É tanta informação, e tudo narrado de forma tão fluída, tão elíptica, que o leitor passa páginas e páginas sem perceber que leu tanto. 

A adolescência de Eduardo é uma profusão de descobertas e experiências, como toda adolescência deve(ria) ser, e Sabino recria essa fase, em poucas páginas, com uma riqueza e profundidade pouco comuns na literatura. A identificação com os personagens e as sucessivas edições talvez se expliquem, mesmo décadas depois, pelo fato de Sabino não caricaturizar uma fase da vida que, em geral, é vista de forma caricata, em especial pelos adultos. A linguagem sem floreios sustenta esse propósito. 

Mas é a juventude de Eduardo e dos seus amigos Hugo e Mauro que mais importa à trama. É a partir daí que nos deparamos com piadas e reflexões profundas, quase na mesma página, entre os diálogos dos personagens. É aí que surge Antonieta, filha de ministro, com a qual Eduardo se envolverá em uma relação morna. Sente-se deslocado nas festividades, recepções, banquetes e solenidades em que a namorada participa com frequência. Seu sogro, o ministro, lhe arruma um emprego. Ele se casa (fato que demandará apenas meia página do narrador): “estou casado, estou cansado, estou abatido, em verdade estou destroçado, andei depressa demais” (p. 144). 

É a partir daí – do que deveriam ser os resquícios de sua juventude – que nos deparamos com um personagem casado, com uma profusão de personagens, com uma profusão de relações e sugestões de relações extra-conjugais. É uma época de reencontro com os amigos Mauro e Hugo. Muitos fatos ocorrem, e conseguimos – como leitores – acompanhá-los sem maiores problemas. O encontro marcado não parece ficção, mas é, pois se assemelha tanto com a vida de qualquer pessoa, mas tudo ali é tão particular, tão pessoal, que só Eduardo (ou Sabino?) poderia vivê-la. E por parecer tanto com a vida de qualquer pessoa, por ser tão realista, os fatos surgem naturalmente, sem artificialidades, sem “plot twist” para manter o interesse do leitor, que ali fica por causa da capacidade da literatura de criar uma vida tão viva. 

Essa vida – a vida de Eduardo – vai seguindo como a vida de tantos, milhões, bilhões pelo mundo: é negligente com seu casamento, vê sua relação se desgastando com a esposa, que perde o filho em gestação. Eduardo, como milhões, como bilhões à época, ou atualmente, se vê perdido, sem propósito na vida, sem perspectiva. Depois de Antonieta, tenta se relacionar com uma, com outra, e todas elas, com o tempo, vão embora, não querem saber de Eduardo, que se mostra sempre distante, pouco interessado. 

O encontro marcado, de Fernando Sabino, é um romance que trata do Brasil, da história, do contexto sem explicitá-los, e isso – acreditem – é o mais difícil na escritura de uma narrativa ficcional realista. Mas Sabino consegue. E ao conseguir, consegue também transformar sua obra numa história universal, sem datatismos dispensáveis, pois o que resta – como restou – é a queda, a frustração, a desesperança, o medo, o sono, o desânimo, tão comuns nessa Terra: 

“Qual o seu próprio erro? Não sabia: em alguma parte de sua vida ele se deixara ficar, esquecido, abandonado, largado para trás – e agora teria de se buscar como aquela agulha do sonho, perdida no fundo do mar”. 

REFERÊNCIA

SABINO, Fernando. O encontro marcado. 63ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.


Livros podem ser enviados ao autor da resenha para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: sinvaldo.a.s.junior@gmail.com

 

Sinvaldo Júnior é professor de ensino médio, pesquisador acadêmico e revisor de textos (Textifique Soluções em Textos). Publicou diversas resenhas, artigos de opinião e artigos acadêmicos sobre leitura e literatura, com foco em obras e autores brasileiros. É admirador de Carlos Drummond de Andrade, Campos de Carvalho e José Saramago. Mora em Uberlândia-MG. É também personagem de Rogers Silva.

Top 3 do mês